Nem sempre é fácil manter dois interlocutores conectados. Palavras ambíguas podem deixar um ser pensante apeado num caminho que não era suposto a conversa seguir enquanto que o outro acelera em contramão rumo a um tópico completamente diferente. Por muito próximos que os dois estejam fisicamente um do outro, no plano das ideias, o fio que os unia perdeu-se. Um está a falar de como se proteger das chuvas, tema que não interessa ao outro que versa sobre a origem das tempestades.
Convém não desvalorizar a dificuldade que duas pessoas, diante do olhar uma da outra, têm para se entenderem. No entanto, são um grupo pequeno. É fácil dar a volta ao assunto quando a sintonia diverge. Basta fazer reset e clarificar. O exercício torna-se mais complicado quando, em vez de uma dupla, estamos a falar de um conjunto de oito cabeças dentro de água.
É desse sentido apurado de sincronização que se faz a natação artística. Neste caso, nem falar é possível. A química do grupo é tanta que parece existir uma capacidade humanamente superior para tagarelar com a boca afundada, o que, na realidade, não acontece. As pernas são o periscópio dos corpos imersos. A coordenação funde-as em exercícios que tornam cada elemento da equipa, muitas vezes, numa sombra do outro. Quando entrelaçadas, formam-se estrelas, corações, flores, formas geométricas de contornos perfeitos preenchidas pelo azul do fundo da piscina que parece dar cor à água.
Porém, a natação artística exige mais do que isso. É uma combinação de parâmetros que, todos somados, definem os medalhados. Daí que a modalidade tenha sofrido um rebranding, deixando de se chamar natação sincronizada. O exercício acrobático encerraria um concurso que já trazia um exercício técnico e um exercício livre que posicionavam a China na liderança, com uma vantagem de 69.4200 pontos em relação aos Estados Unidos.
Independentemente do vencedor, o primeiro posto da competição por equipas ia sempre pertencer a um país diferente daquele que fez trono do lugar mais alto do pódio nos últimos tempos. A Rússia tinha conquistado todas as 12 medalhas de ouro das últimas seis edições na prova por equipas e também da prova de duplas. Desta vez, a China, segunda classificada no Rio de Janeiro e em Tóquio, saciou-se com o título olímpico.
As escamas que revestiam as chinesas eram fatos em tons quentes. Suspeitava-se que alguns dos detalhes que os preenchiam eram labaredas a arder sem que ninguém as tivesse ateado. Mesmo dentro da água, tal indumentária acendeu a melhor prestação do dia. Movimentos repentinos alternavam com deslizes suaves preparados para ilustrarem um cenário de caos, enérgico, complementado com saltos aparatosos.
Via-se então que o exercício acrobático não é menos espetacular do que os outros. Aqui, a criatividade também está livre para comparecer. “Circle of Life”, a música que “Rei Leão” celebrizou, empurrou o desempenho do Egito. Foi um contraste significativo quando a França subiu ao palco aquático embalada por um ritmo circense. A Itália apostou no lado épico, enquanto Espanha até em cima de letras de Eminem nadou. O Canadá foi ainda mais longe e acrescentou Snoop Dogg, o espetador profissional dos Jogos Olímpicos de Paris, à playlist.
Não é de uma avaliação de gosto musical que estamos a falar, mas é o som que embala toda a atuação. Sim, é legítimo tratá-la assim. Tem todos os elementos para ser uma performance digna de estar num teatro se estes instalassem poças gigantes e profundas no lugar dos seus palanques de madeira.
A interpretação, além de se coordenar com o som, exige uma ligação fluída entre os elementos, o que nem sempre é fácil quando se tentam exibir figuras que acrescentem valor à nota. Muito embora ficar petrificado seja impossível, os diferentes conjuntos montam estátuas flexíveis que se derretem girando em torno do suporte subaquático que as aguenta no ar. O alvo das atenções, aquela que levita com ajuda das colegas que esperneiam no fundo para que ela se mantenha firme como a face visível do esforço, acaba quase sempre projetada em grande estilo.
Procura-se obter harmonia do início ao fim. Ainda antes de entrarem na água, as nadadoras assumem o papel que vão representar nos segundos seguintes. Ao longo do exercício, é contada uma história da qual as concorrentes são personagens caracterizadas a rigor. Voltam a si mesmas quando a música se esgota e estão livres da pressão inerente à vontade de obterem um desempenho majestoso. A postura que mais se transformou foi a das japonesas, que durante a prova mostraram rostos assanhados e, assim que a mesma terminou, mergulharam em simpatia. Ainda assim, foi a França (268.8001) que impulsionou as notas numa fase inicial.
Na natação artística, são as mulheres que têm o papel principal. Paris 2024 abriu uma exceção para que também homens pudessem fazer parte das equipas, mas nenhum país decidiu seguir esse caminho. O norte-americano Bill May e o italiano Giorgio Minisini foram quem mais perto esteve de fazer história. Acabaram por ser preteridos das respetivas seleções em prol de alguém mais bem preparado.
Não era lícito que a melhor nota do dia fosse merecedora da medalha de ouro. Foi por isso que a equipa espanhola (267.1200), mesmo não tendo uma pontuação que se posicionasse no top-3 do exercício acrobático, conseguiu chegar ao bronze. A soma de tudo o que apresentou ao longo da competição assim o ditou.
A China ficou para o fim. Antes, tinham-se exibido os Estados Unidos. Eram os dois países mais destacados na corrida aos lugares cimeiros, com desempenhos vistosos, os maiores voos e a agilidade de peixes que não merecem sermão. As chinesas foram as últimas a entrar na água. Imediatamente antes, tinham visto as norte-americanas obterem um 271.3166 que ficou banalizado assim que as novas campeãs olímpicas atingiram o 283.6934 que, no total das três provas, marcou uma diferença de 81.7968 entre as duas nações.