Era uma corrida entre relatos extraordinárias, entre viagens incríveis. Talvez seja requisito, necessário para enfrentar esta prova brutal, este exercício de dúvida e tensão constantes, esta prova demasiado curta para poupar energias e excessivamente longa para ir sempre no máximo.
Para culminar este disputa singular, este confronto de trajetórias quase cinematográficas, um desfecho de filme. Voltemos à última reta, aos derradeiros 100 metros da disputa pelo ouro nos 400 metros dos Jogos Olímpicos.
Quando o quarto decisivo da competição chegou, Jereem Richards, o trintão da Trinidade e Tobago, liderava. Richards partiu para a final na pista de fora e, talvez por isso, quis surpreender, parecendo, desde o tiro de partida, correr como um homem que foge de um touro.
Nessa última curva, já se pressentia que Matthew Hudson-Smith ia superar o seu adversário. Querem uma história incrível? Aqui a têm: o britânico, sete vezes medalhado em Europeus e três em Mundiais, sofreu de problemas de saúde mental durante a pandemia. Estava sozinho nos EUA, isolado em casa.
Confessou, anos depois, que tentou suicidar-se, afundando emocionalmente pelas saudades da família e pelos constantes problemas com lesões. Sem competir, perdeu patrocinadores. Com lesões atrás de lesões e sem seguro, estando a viver nos EUA, teve problemas financeiros, enchendo-se de dívidas.
Não muitos anos depois, acaba de bater o recorde europeu dos 400 metros. Correu fantasticamente em Paris, fixando uma marca de 43.44 segundos.
Ah, mas esta era uma corrida extraordinária, de homens e percursos extraordinários. Houve alguém mais incrível que Hudson-Smith, que terá de sentir-se muito orgulhoso por pendurar uma prata ao peito depois de ter tentado acabar com a própria vida.
O mais incrível foi o milagroso Quincy Hall. O norte-americano era 5.º na tal última curva. Além de Richards e Hudson-Smith, parecia que Kirani James ia para as medalhas. Outra história marcante. Único ouro de Granada na história dos Jogos? É de James, em Londres 2012. Única prata de Granada? É de James, no Rio 2016. Bronzes? Granada tem dois, um deles de James.
Mas não, Kirani não voltou às medalhas, terminando em 5.º. Voltemos a Hall.
O atleta de 26 anos parecia longe da disputa à entrada para os derradeiros 150 metros. Olhando para a sua técnica de corrida, os mais puristas terão franzido as sobrancelhas: parecia um aluno apressado a correr para apanhar o autocarro, estando atrasado para o exame. Mexia o corpo todo, todo ele balançando, parecia empurrar o ar para passar.
Só que foi passando. Foi avançando. Com uma passada extraordinária, o norte-americano foi, um a um, passando os adversários. A 100 metros do fim parecia difícil discutir o pódio. A 30 metros do fim parecia difícil discutir o ouro.
Foi ouro. Com uma ultrapassagem in extremis a Matthew Hudson-Smith, é o novo campeão olímpicos dos 400 metros. Com 43.40 segundos, foi a 5.ª melhor marca de sempre na prova em que se dá uma volta ao estádio.
Quincy Hall está habituado a surpreender. Certo dia, com 5 anos, os primos mais velhos desafiaram-no para correr no jardim da família. O mais novo da família ganhou-lhes e isso incentivou-o a começar no atletismo.
O rapaz de Kansas City também jogou futebol americano, mas o talento sempre esteve em correr. Desde novo somou muitos triunfos nas competitivas provas dos EUA, acabando recrutado pela universidade da Carolina Sul, onde se licenciou em sociologia. Bronze nos Mundiais de 2023, chega, nestes Jogos, à grande glória da carreira, um ouro logrado com toques de milagre, de reviravolta impossível.
O bronze, também obtido in extremis, também encerra toques peculiares. Foi para Muzala Samukonga, jovem de 21 anos da Zâmbia. É, apenas, a terceira medalha da história para o país africano e a primeira no século XXI, depois da prata de Samuel Matete nos 400 metros barreiras de Atlanta 1996 e do bronze de Keith Mwila no boxe em Los Angeles 1984.